O activista Luaty Beirão considerou hoje que Luanda é uma “cidade sem solução”, defendendo que é preciso “partir muito” para conseguir reconstruir uma cidade que seja adequada ao número de habitantes que a capital angolana tem. E então os… Musseques de Luanda?
“Luanda não tem solução, foi concebida para 350 mil habitantes, e nela vivem 7 a 8 milhões que se acotovelam pelo espaço”, disse o activista, num vídeo colocado no Twitter, no seguimento das cheias que vitimaram dezenas de pessoas na capital angolana.
“As infra-estruturas estão sobrecarregadas, Luanda é hoje uma cidade NTS, Não Tem Solução”, vincou o activista no vídeo.
Na opinião de Luaty Beirão, “é preciso partir muito para reconstruir como deve ser, mas partir implica indemnizar ou implica expropriar à força e atirar famílias inteiras para zonas agrestes como tem sido feito até aqui”.
Comentando as imagens de veículos encalhados nos rios em que se transformaram algumas das ruas de Luanda, o activista conclui o vídeo alertando: “Indemnizar na cidade com os metros quadrados mais caros do mundo num país descapitalizado, que vive apenas de uma ‘comodidade’ [petróleo], esta própria dependente dos caprichos do mercado é, digamos, insensato”.
As chuvas torrenciais que provocaram o caos em Luanda esta semana deixaram pelo menos 14 mortos e mais de 8.000 pessoas desalojadas, segundo dados transmitidos na segunda-feira à noite pelo porta-voz do serviço de protecção civil e bombeiros.
Faustino Miguens, que falava ao canal angolano TV Zimbo após uma reunião de emergência da comissão provincial de protecção civil, coordenada pela governadora de Luanda, Joana Lina, indicou que 14 pessoas morreram devido às chuvas e mais de 1.600 casas ficaram inundadas.
No município de Luanda, foram registados cinco mortos, enquanto nos municípios do Cazenga três pessoas morreram, no Cacuaco outras duas e igual número em Viana e Kilamba Kiaxi, que morreram em consequência de electrocussão e desabamento de paredes, enquanto uma criança de um ano e a sua mãe foram arrastadas pelas águas.
Há também a registar dois feridos e 1.617 casas inundadas, num total de 8.165 pessoas afectadas.
O mesmo responsável acrescentou que 16 residências desabaram, 15 árvores caíram, um posto de iluminação pública tombou sobre uma viatura e houve um incêndio numa cabine eléctrica, bem como a destruição de uma ponte e um “aumento substancial” do volume de água nas bacias de retenção de águas pluviais, que transbordaram para a via publica e casas adjacentes.
Além das vítimas e dos danos materiais ainda por calcular, a chuva dificultou a circulação e impediu os transportes públicos de transitar em algumas zonas.
Faustino Miguens adiantou que as pessoas afectadas vão receber apoio por parte das administrações municiais, salientando que a prioridade é acudir a essas pessoas.
Até quarta-feira, os serviços de meteorologia continuam a prever chuva intensa e trovoadas.
“Os Musseques de Luanda” constituíram a dissertação para obtenção do grau de mestre em Arquitectura, na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, de Andrea Carina de Almeida Bettencourt, em Julho de 2011. Eis o respectivo Resumo, só por si elucidativo e actual, apesar dos seus dez anos:
«Os musseques de Luanda, assentamentos de carácter informal localizados maioritariamente nas áreas peri-urbanas da cidade, são a representação física da segregação social no espaço urbano desta cidade capital de Angola, localizada na parte ocidental da África austral.
A segregação racial e de classes no período colonial, os processos de imigração e o êxodo rural, as consequências na economia das longas décadas de guerra colonial e civil, a própria orientação da
economia nacional são aspectos que estão na base para o entendimento da situação urbana actual de Luanda. As falhas nas soluções e na implementação dos planos urbanísticos que foram sendo desenvolvidos, a própria legislação existente e as políticas de ordenamento do território ou a sua inexistência têm vindo a contribuir, de certo modo, para facilitar a expansão e densificação de forma acelerada e desordenada dessas áreas.
Luanda tem hoje cerca de 6 milhões de habitantes, dos quais cerca de 4 milhões vivem em áreas informais, carentes de infra-estruturas e de condições mínimas de habitabilidade. A problemática habitacional e os elevados níveis de pobreza que se vivem nas extensas áreas de musseque em Luanda e no restante território nacional, levaram as Nações Unidas a considerar Angola como um dos alvos no cumprimento das metas do milénio de luta contra a pobreza.
O caso dos musseques de Luanda é comparável por exemplo, às favelas do Brasil, aos chamados “caniços” de Moçambique ou aos slums da África do Sul e da Índia. Mesmo em alguns países mais desenvolvidos, como Portugal e outros países da Europa, é possível encontrarem-se casos pontuais de áreas urbanas informais ou de génese ilegal. Estes obrigam a intervenções que podem servir de referência na procura de soluções a implementar em países em desenvolvimento.
Para se formularem princípios de intervenção para o melhoramento de áreas urbanas informais é importante ter-se em consideração quer paradigmas teóricos quer referências de outras experiências de casos semelhantes. A aplicação destes princípios no caso particular de Luanda, para ser bem sucedida deve ter em consideração os traços específicos desta realidade e a forte influência de hábitos não-ocidentalizados e de cultura rural no modo de vida da população.»
E agora a conclusão:
«A economia capitalista que marca o meio urbano contemporâneo tem implicações directas sobre o uso do solo e a forma como este se organiza e se distribui. As áreas urbanas formais, habitadas pela população privilegiada, são envolvidas por um vasto universo de ocupações informais onde habita a população desfavorecida. Este é o cenário real de Luanda, tal como da maioria das cidades africanas.
Os exemplos abordados neste trabalho e o caso de estudo de Luanda, mostram que esta realidade urbana resulta também de um crescimento urbano e aumento da população exponencial num período de tempo reduzido. As implicações deste crescimento são mais complexas em contexto de cidades ex-coloniais afectadas por questões raciais e que passaram por um processo de independência violento, seguido de uma guerra civil desestruturante.
Ao longo de todo o percurso histórico da cidade podem-se apontar alguns factores que se revelam cruciais como contributo para a situação actual, marcada por uma sociedade com graves discrepâncias socioeconómicas, que se reflectem na estrutura espacial da cidade. Luanda continua a ser marcada por processos de segregação social e espacial, inerentes à colonização e às décadas de guerra civil. Nesse período, Luanda foi a cidade de Angola com melhores condições de sobrevivência, tornando-se o destino preferido pela população oriunda de todo o território nacional.
A forma de ocupação do espaço urbano e a expansão da cidade e das suas áreas periféricas revelam a falta de controlo no ordenamento do território e são o reflexo da carência de legislação e de políticas de gestão urbana eficientes.
A grave problemática urbana e o défice habitacional que hoje se vive em Luanda co-habitam com um grande investimento imobiliário, com a explosão de construções pontuais de grande envergadura no espaço formal e com o reconhecimento internacional de uma capital de um “país de oportunidades”.
No entanto, constata-se um maior esforço e interesse por parte das entidades do Estado e Instituições locais sobre a questão habitacional.
A realidade é que cerca de 80% da população de Luanda vive em áreas de musseques com condições de habitabilidade muito débeis e elevados níveis de pobreza. A tendência aponta para que a migração voluntária continue no sentido da cidade ou dos seus arredores, ainda que para instalação em assentamentos informais precários. O conceito de musseque coincide com o de slum nas definições e classificações das Nações Unidas, e enquadra-se nos níveis de pobreza mais baixos estabelecidos por este organismo.
Analisando outros casos, tais como as favelas do Brasil, os caniços de Moçambique ou até mesmo situações pontuais críticas em subúrbios portugueses como o caso da Cova da Moura, Luanda aparece como uma cidade com grandes extensões de área urbanas críticas. Estes outros casos aqui apresentados foram abordados a partir da leitura de teóricos e especialistas que se debruçam sobre as problemáticas da cidade e do urbanismo, que apresentam soluções que requerem ponderação e adaptação a cada caso.
Urgem estratégicas de intervenção dinâmicas, não só a nível de qualificação das áreas de musseque, no sentido de melhorar as infra-estruturas públicas e as condições de habitabilidade, como também a nível do controlo e ordenamento do território em expansão.
É urgente uma correcta legislação e política de gestão do solo urbano, para que qualquer projecto de requalificação urbana de áreas de assentamentos informais tenha segurança e garantia de eficiência e durabilidade.»